
De tempos em tempos, descobre-se uma Maria Gadu pelos bares da vida e, percebe-se que dentro da carência de uma MPB estagnada no âmago da sua genialidade temporal, existem talentos que se mantêm intactos à corrosão da falta de qualidade e ao declínio de um dos gêneros musicais mais apreciados no mundo.
É neste contexto atribulado que se me aparece Ricardo Machado, cantor carioca, dono de uma voz consistente, de timbre metálico que quando se propõe a desafiar os seus agudos, transforma a palavra dentro da melodia de uma forma estética admirável, alcançado ápices primorosos que nos trazem o puro prazer em se ouvir a boa Música Popular Brasileira.
Com dois álbuns independentes, “Corra e Olhe o Céu” e “Ricardo Machado”, o cantor oferece um trabalho límpido e de sensível sinceridade, sem em momento algum, fugir da proposta ou cair no vão dos projetos pretensiosos. Ricardo Machado propõem-se a cantar a MPB, mostrando que as canções não têm tempo e intérpretes definitivos, e que dentro de um acervo infinito, redescobrir sucessos vestindo uma voz bonita, torna-se novo e único, quase com cheiro de inédito.
Neste artigo, o primeiro álbum de Ricardo Machado se nos será apresentado, proporcionando a quem correr o risco, uma agradável surpresa dentro da arte de cantar, sem os resquícios do compromisso com as exigências do mercado. Singela, sincera, de uma beleza tênue e límpida, a obra de Ricardo Machado é um verdadeiro convite ao bom gosto, ao prazer de ouvir a Música Popular Brasileira.
Abrem-se as Faixas em Suave Romantismo

O álbum de estréia, aqui renomeado “Corra e Olhe o Céu”, traz um repertório conciso, com canções suaves, feitas por diversos autores, que se interligam em um todo, onde a melodia e a poesia são indivisíveis. Letra e melodia nivelam-se, sem jamais uma sobressair-se à outra, ponto de partida para o estilo pessoal de Ricardo Machado. Poucos como ele pronunciam todas as sílabas da canção, diluindo-as na melodia com clareza, sem arranhar a delicadeza musical, fazendo a felicidade de qualquer letrista, muitas vezes ofuscado pela música, iluminando assim, a poesia que há nas composições da MPB.
“Canção da Manhã Feliz” (Haroldo Barbosa – Luiz Reis), abre o álbum. Canção que exalta o amor, que chega suave depois das tempestades, que entra como uma luz radiante em um coração discreto. Ricardo Machado sabe dosar o lirismo exato da canção, optando por um intimismo lírico, ameaçando, por alguns momentos, lançar-se na beleza metal da sua voz, contendo-se da explosão estética que pode e quer

“Eu abri a janela
E este sol entrou
De repente em minha vida
Já tão fria e sem desejos
Estes festejos
Esta emoção
Luminosa manhã
Tanto azul tanta luz
É demais pro meu coração”
“Todo Azul do Mar” (Ronaldo Bastos – Flávio Venturini) chega como um sopro, ampliando o proposto na primeira faixa, transformando a poesia em melodia, sem ela, o canto de Ricardo Machado não faz sentido. Os floreados são salpicados como atenuantes ao convite lírico.
“Quando eu dei por mim
Nem tentei fugir
Do visgo que me prendeu
Dentro do seu olhar”
Rasgos Viscerais
“Respondo que ele aprisiona, eu liberto
Que ele adormece as paixões, eu desperto
E o tempo se rói com inveja de mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor pra tentar reviver”
Se até o momento o cantor mostrou-se comportado, sedutoramente acadêmico, na

“Bate que sou tua porta
Bate que sou teu bife
Bate que sou teu homem
Sou teu cão (...)
(...) Me chama de chão
Me chama
Come que eu sou teu rabo
Cospe, que eu sou teu prato”
No Lirismo dos Autores do Clube da Esquina
“Clareia manhã
O sol vai esconder a clara estrela
Ardente
Pérola do céu refletindo
Teus olhos”
“Travessia” (Milton Nascimento – Fernando Brant), a mais definitiva canção de Milton Nascimento, passou pelas mais diversas vozes da MPB, vestindo desde a densidade claustrofóbica de Elis Regina à interpretação em estilo épico do autor. Foi tão explorada, que por muito tempo tornou-se sem novidades. Ricardo Machado propõe-se em transformar o óbvio em algo seu, conseguindo dar uma identidade própria, o que lhe acentua a intuição e o estilo. Atravessa toda a dor pungente da canção e, quando o desabrochar da melodia eleva a voz no verso “vou soltar o meu pranto” e se espera o ápice de “vou querer me matar”, ele quebra o tom, baixando-o subitamente, fazendo com que o ouvinte desenhe na mente uma imagem a cair no vão de um precipício. Efeito notável, mostrando como o cantor resiste ao passionalismo erguido, optando pelo lirismo poético.
“Solto a voz nas estradas, já não quero parar
Meu caminho é de pedras, como posso sonhar
Sonho feito de brisa, vento vem terminar
Vou fechar o meu pranto, vou querer me matar”
De Paulinho da Viola a Cartola
“Ah coração teu engano foi esperar por um bem
De um coração leviano que nunca será de
Ninguém”
“Corra e Olhe o Céu” (Cartola – Dalmo Casteli), amplia a proposta do álbum. A voz mostra-se quente, transitando as possibilidades, arriscando os graves, concebendo um ludismo romântico, vertido nas sílabas melódicas, na percepção da sensibilidade autoral. A canção alinhava toda a proposta do álbum, selando os vários universos de autores diferentes apresentados por Ricardo Machado. É o momento que se identifica com precisão o intimismo do cantor e a expansão da sua sensibilidade, a sofisticação na escolha do repertório e a sua paixão pela genuína MPB.
“Linda!
No que se apresenta
O triste se ausenta
Fez-se a alegria
Corra e olhe o céu
Que o sol vem trazer
Bom dia”
Ricardo Machado mostra-se seguro e à vontade no universo de Cartola. Segue o rastro do mestre com a faixa “Acontece” (Cartola). Mais uma vez deixa fluir o timbre metálico, que emerge quase que sufocado dentro do intimismo acadêmico que mantém coerente, sem nunca ferir a beleza exposta e a subtender a que se esconde no mais sublime âmago. Apesar de mais duas faixas, é como se ele se despedisse aqui, encerrando o delicado e sofisticado repertório, no qual transitou com domínio pleno e suavidade envolvente.
“Esquece o nosso amor, vê se esquece
Porque tudo na vida acontece
E acontece que eu já não sei mais amar
Vai chorar, vai sofrer, e você não merece
Mas isso acontece”
A décima faixa talvez seja o grande
E o ápice final vem com “Bachianas Brasileiras nº 5” (Heitor Villa Lobos), onde Ricardo Machado acentua as raízes de cantor lírico. A ousadia não torna a proposta do álbum pretensiosa, imprime-lhe o carimbo do bom gosto, afirma toda a sofisticação que se manteve da primeira à última faixa. Encerra um trabalho ímpar, de um cantor que ao penetrar com coragem no universo da MPB, dá ao repertório escolhido uma identidade própria, despindo-o de qualquer estigma que se lhe exija um repertório próprio, feito de inéditas.
Longe de se mostrar “crooner”, Ricardo Machado revela-se um cantor de personalidade arraigada, de timbre agradável e de possibilidades múltiplas. O álbum é acadêmico, por ser o primeiro, aquele em que o cantor quer e precisa acertar. Mas dentro deste academicismo, há uma beleza rara, uma promessa de uma grande voz, um gostinho de quero mais aos ouvintes.
Ficha Técnica:
Produção Independente
Produção, Coordenação e Seleção de Repertório: Ricardo Machado
Técnico de Estúdio: Ricardo Calafate
Técnicos de Mixagem e Masterização: Vanderlan Júnior e Cláudio Louro
Arranjos: Vanderlan Júnior
Concepção da Capa: Ricardo Machado
Fotos: Jorshey Stúdio
Arte Final: Cláudio Louro
Gravado no Estúdio Usina
Mixado e masterizado no Estúdio Groove
Agradecimentos Especiais de Ricardo Machado: À minha família, Cláudio Louro, Vanderlan Júnior, Ricardo Calafate, Maurício Capistrano, Maurício Rizzo, Márcia Coelho, Dudu e a todos que apoiaram a realização deste trabalho
Músicos Participantes:
Violão Eletro-Acústico: Ricardo Calafete (Faixas “Canção da Manhã Feliz”, “Todo Azul do Mar”, “Resposta ao Tempo”, “Me Chama de Chão” e “Nascente”) e Maurício Rizzo (Faixa “Acontece”)
Violão Acústico: Maurício Capistrano (Faixas “Travessia”, “Coração Leviano”, “Corra e Olhe o Céu”, e “Bachianas Brasileiras número 5”)
Teclados e Programação de Bateria: Vanderlan Júnior
Vocais: Ricardo Machado
Participações Especiais: Márcia Coelho (voz e vocal em “Canção da

Faixas:
1 Canção da Manhã Feliz (Haroldo Barbosa – Luiz Reis), 2 Todo Azul do Mar (Ronaldo Bastos – Flávio Venturini), 3 Resposta ao Tempo (Aldir Blanc – Cristóvão Bastos), 4 Me Chama de Chão (Paulinho Moska – Fernando Zarif – Branco Melo), 5 Nascente (Flávio Venturini – Murilo Antunes), 6 Travessia (Milton Nascimento – Fernando Brant), 7 Coração Leviano (Paulinho da Viola), 8 Corra e Olhe o Céu (Cartola – Dalmo Casteli), 9 Acontece (Cartola), 10 Canção da Manhã Feliz (Haroldo Barbosa – Luiz Reis) Participação Especial Márcia Coelho, 11 Bachianas Brasileiras nº 5 (Heitor Villa Lobos)
Texto: Jeocaz Lee-Meddi
Artigo Publicado no site: Virtuália - O Manifesto Digital

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